O SORRISO DE PANDORA

“Jamais reconheci e nem reconhecerei a autoridade de nenhuma pretensa divindade, de alguma autoridade robotizada, demoníaca ou evolutiva que me afronte com alguma acusação de pecadora, herege, traidora ou o que seja. Não há um só, dentre todos os viventes, a quem eu considere mais do que a mim mesma. Contudo nada existe em mim que me permita sentir-me melhor do que qualquer outro vivente. Respeito todos, mas a ninguém me submeto. Rendo-me à beleza de um simples torrão de terra, à de uma gotícula de água, à de uma flor, à de um sorriso de qualquer face, mas não me rendo a qualquer autoridade instituída pela estupidez evolutiva da hora. Enfim, nada imponho sobre os ombros alheios, mas nada permito que me seja imposto de bom grado Libertei-me do peso desses conceitos equivocados e assumi-me como agente do processo de me dignificar a mim mesma, como também a vida que me é dispensada. Procuro homenageá-la com as minhas posturas e atitudes e nada mais almejo. É tudo o que posso dizer aqueles a quem considero meus filhos e filhas da Terra. “ In O SORRISO DE PANDORA, Jan Val Ellam

sexta-feira, janeiro 29, 2010

PORTUGAL Feliniano...


O LABIRINTO DA SAUDADE
Eduardo Lourenço

"Que nos aconteceu a nós? Em Portugal como destino, que é a possível revisitação do Labirinto, tentei responder à questão. Nos seus já longos oito séculos de existência — fórmula, no fundo, obscura, pois não tem em conta a permanente reciclagem de si mesma que é a vida de qualquer povo — Portugal nunca sofreu metamorfose comparável à dos últimos vinte anos. Não foi apenas uma mudança exterior, uma dilatação comparável à do tempo em que se tornou país das Descobertas, mas uma alteração ontológica, se isto se aplica a um povo. Estamos tão dentro dela que a não podemos pensar. Que mais não fosse, caracteriza-a o facto de tal metamorfose não ser obra sua, ou eminentemente sua, como o foi noutras épocas. Trata-se de um fenómeno mais vasto, o fim da civilização europeia sob paradigma cristão e iluminista, se é lícito associar estas duas matrizes da milenária e agora defunta Europa.

Não há jubileu, alheio ou nosso, que possa mascarar, não o mero fim de um conflito que marcou o nosso século, mas o esgotamento, não apenas na cabeça e na sensibilidade de uma elite como no século XIX, mas no coração e na inteligência do cidadão comum, de uma cultura com dois mil anos de passado. Em pouco mais de vinte anos, o Ocidente, mas sobretudo a Europa, entrou, com mais facilidade do que os Judeus no mar Vermelho, na idade pós-cristã.

Muitos irão achar o diagnóstico alucinatório, sobretudo os que mais contribuem para lhe dar vida. O futuro o dirá. Alguns lembrar-me-ão que o folclore cristão continua intacto, como se o do paganismo alguma vez tivesse soçobrado. Outros pensarão, como já no fim do século XIX julgava Eça de Queirós, que uma religiosidade vagamente ecuménica, vagamente budista, substitui e refina a clássica mitologia cristã. Poucos defenderão, como Kierkegaard, que a derrocada do cristianismo e da cultura que ele animava é apenas fictícia, pois esse cristianismo nunca foi mais, salvo para raros, do que a máscara de um paganismo eterno e inexpugnável.

Sem se problematizar tanto, como é sua tradição, o nosso Portugal — podíamos dizer a nossa Espanha, a nossa Itália, sem falar da Europa há muito protestante — saiu do seu cristianismo, que entre nós era e foi sempre catolicismo, como se nunca lá tivesse entrado. Saiu por dentro, não por fora. Talvez o país nunca tenha sido tão sociologicamente, tão consensualmente, «católico». Já ninguém discute esse tipo de catolicismo, como se viu por ocasião da consagração dos três pastorinhos. Pedimos até, ostensivamente, perdão de termos sido os maus cristãos que fomos a quem não nos pediu contas de termos sido, através de continentes, os «exemplares» portadores do Evangelho. Embarcámos, cantando e rindo, na Nave qui va... de Fellini, contemporâneos do Satyricon, como ontem o éramos dos «autos de fé», donde recebíamos o estímulo vital da ortodoxia. Tudo na mais perfeita felicidade televisiva, convertidos nos big brothers uns dos outros, afinal castiça vocação nossa de familiares do Santo Ofício por conta do Senhor do amor universal. "
(...)
(excerto de artigo publicado há cerca de 2 ou 3 ano?)
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