O SORRISO DE PANDORA

“Jamais reconheci e nem reconhecerei a autoridade de nenhuma pretensa divindade, de alguma autoridade robotizada, demoníaca ou evolutiva que me afronte com alguma acusação de pecadora, herege, traidora ou o que seja. Não há um só, dentre todos os viventes, a quem eu considere mais do que a mim mesma. Contudo nada existe em mim que me permita sentir-me melhor do que qualquer outro vivente. Respeito todos, mas a ninguém me submeto. Rendo-me à beleza de um simples torrão de terra, à de uma gotícula de água, à de uma flor, à de um sorriso de qualquer face, mas não me rendo a qualquer autoridade instituída pela estupidez evolutiva da hora. Enfim, nada imponho sobre os ombros alheios, mas nada permito que me seja imposto de bom grado Libertei-me do peso desses conceitos equivocados e assumi-me como agente do processo de me dignificar a mim mesma, como também a vida que me é dispensada. Procuro homenageá-la com as minhas posturas e atitudes e nada mais almejo. É tudo o que posso dizer aqueles a quem considero meus filhos e filhas da Terra. “ In O SORRISO DE PANDORA, Jan Val Ellam

quinta-feira, junho 30, 2005

O FEMININO RESGATADO
OU A POESIA NO COTIDIANO


A dimensão poética do feminino, que dá sentido à vida, não é exclusividade da mulher: ela faz parte da evolução de todo ser humano.

O que falta ao nosso mundo é a conexão anímica. A afirmação, de Carl Gustav Jung, poderia ser complementada por outra, de Roger Garaudy: Viver, antes de mais nada, é participar do fluxo e da pulsação orgânica do mundo.

A conexão anímica citada por Jung e a qualidade de vida proposta por Garaudy estão estreitamente vinculadas ao que chamamos de feminino no ser humano: um potencial interno a ser trabalhado tanto no homem como na mulher, feito de valores hoje considerados supérfluos, superficiais, pouco utéis para a luta pela sobrevivência básica e por isso relegados a um segundo plano.

Entre esses valores estão a estética, a intuição, a poesia, o raciocínio e o pensamento não lineares, os sentimentos, a sincronicidade, os sonhos... Abrir-se para o feminino, portanto, é entrar em um mundo de mistério e encantamento uma vivência poética que dá cor, entusiasmo e significado à vida. De acordo com Erich Neumann, um dos seguidores de Jung, a civilização ocidental vive uma crise motivada pelo excesso de valorização do masculino, representado pelo arquétipo do Pai, que leva à inflação espiritual do ego.
O reequilíbrio pode ser obtido aproximando-nos do inconsciente, representado pelo feminino, não só através do arquétipo da Grande Mãe, mas de todas as qualidades simbólicas do feminino pertinentes aos vários ciclos evolutivos da consciência.
Outro grande perigo da atualidade citado por Neumann é a desvalorização das forças transpessoais. Tudo o que não pode ser compreendido e analisado pelo ego não é encarado com respeito, mas simplesmente reduzido, como algo sem importância ou ilusório. Anulado, reprimido ou ignorado, o mistério perde sua força.


Assim, o universo perde seu caráter assustador, mas, sem o mistério sagrado que transcende o ego, a vida torna-se mecânica e sem sentido.
A vivência do feminino não torna menos árdua a luta pelos objetivos e metas propostas pelo mundo atual. Mas pode transformá-la em uma aventura corajosa e criativa, com surpresas agradáveis, mesmo através das dificuldades.
Pela sua própria condição biológica, a mulher está naturalmente mais próxima do feminino.
Ao contrário do que se poderia pensar, essa proximidade às vezes dificulta o desenvolvimento desse potencial, porque o coloca muito próximo de um nível de atuação inconsciente. Tanto quanto o homem, a mulher deve se esforçar conscientemente para diferenciar e desenvolver os valores pertencentes ao feminino.
O potencial feminino passa por um desenvolvimento simbólico ao longo da vida. Para estudar melhor as possibilidades que se abrem em cada fase evolutiva, vamos nos reportar ao referencial que propõe o analista junguiano Carlos Byington: fase matriarcal, patriarcal, de alteridade e cósmica.

Fase 1 matriarcal Aqui, o feminino encontra-se em seu próprio elemento, pois o arquétipo dominante é o da Grande Mãe.
Devemos observar, porém, que além das valores conhecidos, pertinentes ao aspecto maternal do símbolo, há outras características do feminino igualmente importantes.
Neste estágio psíquico, a consciência não se encontra ainda completamente destacada do inconsciente; é permeada pelo seu fluxo, tornando-se difusa e periódica.

Essa condição favorece muito a inspiração criativa, a intuição, qualidades que emergem de modo misterioso, não influenciáveis pela vontade do ego. Convém lembrar que o inconsciente é que é criativo, não o consciente. Portanto, maior abertura e proximidade do inconsciente favorecem a expressão criativa, em todos os níveis, seja ela artística, científica, ou uma busca de novas atitudes.
Outra qualidade do feminino à disposição de homens e mulheres é a consciência do tempo lunar, que enfatiza a qualidade, e não a quantidade de tempo.
Com o desenvolvimento desse potencial, podemos abrir-nos para a apreciação do momento mais favorável à execução de determinadas açõees ou objetivos. O tempo solar seria o pólo masculino, o que enfatiza a pontualidade e a exatidão da ordem cronológica temporal.

A compreensão relacionada com o feminino não se dá por um ato do intelecto. É o coração, e não a cabeça a sede da consciência matriarcal. No entanto, como as percepções estão conectadas com o ego, não podem ser consideradas inconscientes. A compreensão acontece por uma abertura afetiva a um novo conteúdo que, assimilado pela totalidade da pessoa, provoca uma alteração global e não apenas intelectual da personalidade. O feminino, com seu caráter restaurador (pois enfatiza a quietude, a tranqüilidade, o mistério), está ligado às qualidades noturnas. A força regeneradora do inconsciente atua em segredo e permite que nos aproximemos dessa dimensão, às vezes assustadora, da escuridão, através da suavidade da feminino. Para desabrochar com segurança, o crescimento, a regeneração, a transformação, precisam das qualidades femininas do silêncio, da paciência, da receptividade.
Outra qualidade importante é a ação pela entrega, pelo deixar acontecer, a ação pela não-ação dos orientais, o aprendizado do acolhimento, não só na maternidade biológica, mas no carregar e deixar amadurecer uma nova cognição, uma nova atitude.
Para a mulher, o maior perigo nessa fase é justamente atuar o feminino apenas no plano externo, concreto, projetando-o na maternidade biológica. Quando isso acontece, o feminino não se desenvolve no plano interno, simbolicamente, e então ocorre urna grande perda para a personalidade, em termos existenciais.

Para o homem, o feminino será realizado, necessariamente, como evento psíquico e não físico. E ele também tem que se defrontar com um perigo intenso: a permanente desvalorização do feminino.

Como a consciência deve se desligar do inconsciente e seguir para a fase patriarcal, tudo o que estiver ligado à fase matriarcal deverá ser momentaneamente desvalorizado para permitir o desligamento e a passagem à fase seguinte. No entanto, muitos homens (e mulheres também) permanecem fixados na desvalorização do feminino, encarando suas qualidades como algo negativo, a ser superado em definitivo, e não conseguem recuperar, em si mesmos, a força simbólica desse potencial.

Na fase matriarcal, o feminino desabrocha em sua plenitude para homens e mulheres e permanece durante toda a vida como fonte revitalizante de imensas possibilidades criativas e sensíveis, onde podemos nos nutrir para ampliar e enriquecer nossa essência humana.
(...) Continua

Vera Lúcia Paes de Almeida
Texto publicado na Revista THOT nº 58

1 comentário:

Maria Azenha disse...

Maravilhoso , Rosa Leonor.

Abraço,